Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida. Mas antes da pré-história havia a pré-história da pré-história e havia o nunca e havia o sim. Sempre houve. Não sei o quê, mas sei que o universo jamais começou.
[...] Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta continuarei a escrever. Como começar pelo início, se as coisas acontecem antes de acontecer? Se antes da pré-pré-história já havia os monstros apocalípticos? Se esta história não existe, passará a existir. Pensar é um ato. Sentir é um fato. Os dois juntos — sou eu que escrevo o que estou escrevendo. [...] Felicidade? Nunca vi uma palavra mais doida, inventada pelas nordestinas que andam por aí aos montes.
Como eu irei dizer agora, esta história será o resultado de uma visão gradual — há dois anos e meio venho aos poucos descobrindo os porquês. É visão da iminência de. De quê? Quem sabe se mais tarde saberei, Como que estou escrevendo na hora mesma em que sou lido. Só não inicio pelo fim que justificaria o começo — como a morte parece dizer sobre a vida — porque preciso registrar os fatos antecedentes.
LISPECTOR, C. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998 (fragmento).
A elaboração de uma voz narrativa peculiar acompanha a trajetória literária de Clarice Lispector, culminada com a obra A hora da estrela, de 1977, ano da morte da escritora. Nesse fragmento, nota-se essa peculiaridade porque o narrador
- A) observa os acontecimentos que narra sob uma ótica distante, sendo indiferente aos fatos e às personagens.
- B) relata a história sem ter tido a preocupação de investigar os motivos que levaram aos eventos que a compõem.
- C) revela-se um sujeito que reflete sobre questões existenciais e sobre a construção do discurso.
- D) admite a dificuldade de escrever uma história em razão da complexidade para escolher as palavras exatas.
- E) propõe-se a discutir questões de natureza filosófica e metafísica, incomuns na narrativa de ficção.
A alternativa correta é letra C) revela-se um sujeito que reflete sobre questões existenciais e sobre a construção do discurso.
a) Incorreta. Ao contrário do que a alternativa afirma, o narrador se envolve fortemente com os fatos. Vemos, no trecho presente na questão, que esse narrador não se limita a observar os eventos e relatá-los: se assim fosse, ele não questionaria a possibilidade da própria narração, mas falaria objetivamente dos fatos que compõem o enredo do livro. Além disso, embora a leitura do livro não seja estritamente necessária para a resolução da questão, ela poderia ajudar a eliminar mais rapidamente essa alternativa: quem leu “A Hora da Estrela”, deve se lembrar de que o narrador se importa também com as personagens.
b) Incorreta. O narrador tem a preocupação de investigar os motivos dos eventos narrados; o que ele discute é justamente se há a possibilidade de escrever sobre o início das coisas, uma vez que antes de cada evento existe um outro, e nunca se chega a um início absoluto.
c) Correta. O narrador reflete sobre questões existenciais, como a origem do universo, e sobre a construção do discurso, como no momento, perto do final do trecho, em que ele afirma que pensou em começar pelo fim da história, mas achou necessário registrar os antecedentes.
d) Incorreta. Embora o narrador fale sobre a complexidade de escrever uma história, em momento algum ele atribui tal dificuldade à busca por palavras exatas para narrar o que pretende. Os problemas que ele evoca são de natureza mais abstrata, concernentes à própria possibilidade da narração.
e) Incorreta. O narrador certamente discute questões filosóficas e metafísicas, porém, não podemos dizer que isso é algo incomum na ficção. A própria essência da ficção, que consiste na narração de histórias sem compromisso com a veracidade, torna-a um meio ideal para o surgimento de elucubrações metafísicas.